Foto: Rosa Almeida prefix = o ns = "urn:schemas-microsoft-com:office:office" />
Catar os cacos do caos como quem cata no deserto
o cacto
- como se fosse flor.
Catar os restos e ossos da utopia como de porta em porta
o lixeiro apanha
detritos da festa fria
e pobre no crepúsculo
se aquece na fogueira erguida
com os destroços do dia.
Catar a verdade contida em cada concha de mão,
como o mendigo cata as pulgas
no pêlo
- do dia cão.
Recortar o sentido como o alfaiate-artista,
costurá-lo pelo avesso
com a inconsútil emenda
à vista.
Como o arqueólogo a reunir os fragmentos,
como se ao vento
se pudessem pedir as flores
despetaladas no tempo.
Catar os cacos de Dionísio e Baco, no mosaico antigo
e no copo seco erguido
beber o vinho
ou sangue vertido.
Catar os cacos de Orfeu partido pela paixão das bacantes
e com Prometeu refazer
o fígado
- como era antes.
Catar palavras cortantes
no rio do escuro instante
e descobrir nessas pedras
o brilho do diamante.
É um quebra-cabeça? Então de cabeça quebrada vamos sobre a parede do nada
deixar gravada a emoção
Cacos de mim
Cacos do não
Cacos do sim
Cacos do antes
Cacos do fim
Não é dentro
nem fora
embora seja dentro e fora
no nunca e a toda hora
que violento
o sentido nos deflora.
Catar os cacos do presente e outrora
e enfrentar a noite
com o vitral da aurora
(Catando os cacos do caos - Affonso Romano de Sant'Anna)