Ademir Braz
(Para Charles Trocate, no seu caminho)
Já não te amo mais, cidade minha.
Quando, nas dobras da minha lembrança,
tange solitário um tropeiro a tropa
ruidosa dos meus desenganos,
sinto que não te amo mais:
desgosta-me o suor-néctar que exalas
por entre as pernas, se me enlaças e roças
no rosto teus seios imaturos de vestal;
trinco irado os dentes se me acenas doce,
etérea e sedutora, dentre as aves de rapina
que se fartam em tuas entranhas.
Aborrecem-me tuas ruas ensolaradas
ou noturnamente desertas e melancólicas.
Ralam-me o cristal das chuvas de dezembro
e o odor de frutas claras na água de verão.
Já não te amo mais, não te amo mais.
Um gigantesco mar nos põe ao largo
e singro, em velames, a esquecer teu cais.
Se navego teus rios, ouço vozes afogadas
de crianças e o canto deslembrado de pássaros;
vejo encantarias apanhadas em tarrafas
e garimpeiros presos ao farracho de sonhos
cravejado de diamante e turmalinas;
ouço adiante o canto sombrio da aldeã ilhada
em balsa de buritis a descer sem timoneiro
a voraz correnteza da memória, e o estrondo
infindo de um avião a retorcer-se em chamas,
facho imenso aceso sobre águas negras,
farândola insana para um deus insano.
Meu povo sumiu na mata e morreu à míngua
nos castanhais. Ouço-o, sinto-o ainda, e tanto!,
cidade minha... Já, em tuas ruas não anda
mais a triste e doida Zabelona a cavalgar
ao luar sua porca de bobs, nem sobre as casas
ressoa, pela madrugada, o agourento presságio
do rasga-mortalha.
Invés, na calha dura avulta
a gosma rubra de teus pobres, catados à margem
de trilhos e soltos na veia líquida de março.
São pobres peixes tangidos da sombra insalubre
dos brejais. Sujos de ferrugem e fuligem, vomita-os
o dragão chinês na gare de abandonos na periferia.
São lambaris que no mormaço vagam. Cegos, vagam.
Famintos, comem o paul do paiol apodrecido.
Para onde irão a seguir (além da cerca do latifúndio
e da cova anônima de indigentes sem luto),
sob o céu encauchado no forno das siderúrgicas?
Quem sabe os espera, ao acaso, numa esquina,
a perpendicularidade exata e única de uma bala?
Já não te amo mais, cidade minha. Não faz
sentido o amor, quando cegos conduzem
cegos, quando o pássaro perde o canto,
e tudo se precipita para lugar nenhum.