Amortecidas pelo desconforto permanente, as pessoas viajam sem abrir as janelas do ônibus, ainda que a chuva tenha parado.
O abafamento mistura os cheiros de perfume barato, roupas molhadas e suor do trabalho. Um cheiro insuportável de vida real.
Tento esconder-me nos pensamentos ou na paisagem úmida da janela. Mas uma criança senta-se ao meu lado e no colo da mãe, chora.
Seu choro é um misto de birra e sono. A mãe parece não ouvi-la, mais imersa do que eu nos próprios pensamentos.
Distraio--me agora imaginando onde e como moram. E ao dedicar-me a isso, o choro da criança é apenas a música de fundo de uma vida sem glórias.
Localizo-as- mãe e filha – numa das muitas ruas da periferia que conheço. Um beco sem asfalto, mal iluminado, onde o lixo dorme na entrada da rua.
Casas mistas, de alvenaria e madeira. Mais madeira do que alvenaria.
Quem sabe moram na baixada, onde a estiva tem por baixo a água suja, o “chão de estrelas” do samba do tempo em que a favela era “lírica” para os bem postos na vida.
Deve haver quatro ou cinco cachorros pela rua e quando elas chegarem ele vão latir muito. Cães da rua latem por tudo e para todos. Quem sabe mais dois ou três garotos. Com fome. Esperando a mãe trazer a comida que faltou no almoço.
Mergulhada nesse texto, não vi quando desceram. E me senti muito mal. Como se de repente me apercebesse de que a minha solidariedade está tão nublada pelo hábito de conviver com o sofrimento alheio a ponto de transformá-lo em ficção.