“... E de tudo fica um pouco.
Oh abre os vidros de loção
e abafa
o insuportável mau cheiro da memória...”
Resíduo – Carlos Drummond de Andrade.
O mau cheiro que é mau porque é saudade.
Pura, filtrada na melancolia desse porvir de vida.
Porque a casa da avó jamais retornará.
e aquele trem não parte mais da Estação da Luz,
e porque não existem mais as latinhas de goiabada com as beiras batidas pelo avô,
para que não cortassem o dedo das crianças.
Vem na boca o gosto das mangas recém apanhadas
e, junto, a visão da chave pendurada na cintura da avó como a guardar a porta do paraíso
– nada mais era do que a chave da despensa com toucinhos pendurados
e potes de doces de mamão verde!
Fica a ternura dos momentos bem lembrados,
o pai retirando um a um os espinhos da macaubeira dos meus pés,
a madrinha fazendo chiar o pão na frigideira,
a Nena no tico-tico correndo pelo porão
e o cheiro inesquecível das camélias no pequeno jardim!
Não, eu não queria a infância de volta.
Se não por nada, pelo perigo de retroceder até pegar sarampo e morrer....rsrs..
Mas, cadê o sentimento de ter esperança,
aquele que eu não tenho mais?
Não, sua perda não é compensada pela racionalidade sexagenária.
Essa que afirma que tudo muda, porque é assim que deve ser.
Não importa o que eu faça ou não faça, tudo muda.
Quem sabe chamo de saudade a raiva da impotência?
Pode ser. Tem jeito de ser.
Mas a saudades do imaginário poder que eu acreditava ter
ao pensar que as camélias cheiravam só quando eu chegava,
Ah! isso era puro contentamento.
A saudade, quase insuportável, não da infância, mas do tempo em que eu tinha esperanças, me abate.
Quase todos os dias. Por isso, às vezes, me encho de amor ao tirar seus óculos do rosto, quando você já dormiu.
Nisso revejo o gesto amoroso do meu avô ao bater as beiradas das latinhas
e a delicadeza das mãos do meu pai tirando espinhos.
E agradeço você existir dia-a-dia ao meu lado,
para que eu não esqueça a minha capacidade de sentir ternura.