Descubro hoje que Ademar Ferreira dos Santos, autor do blog Abnoxio, aí ao lado, morreu em maio passado. A desordem com que cuido do meu tempo me levou a esta tardia descoberta.
Trocamos quatro ou cinco e-mails ao longo de anos. E alguns comentários entre nossos blogs. Na Wikipédia sua biografia é tão pobre e não condiz sequer com o que seu blog retratou:
“Nasceu em Braga onde viveu a juventude, tendo-se, mais tarde, licenciado em Direito pela Universidade de Coimbra. Foi professor do ensino secundário. Ganhou notoriedade como jornalista, tendo colaborado com o Jornal Expresso. Foi, na sua actividade como professor, entre 2001 e 2006, presidente da Direcção da Escola da Ponte em Vila das Aves. Esse projecto ainda continua e faz dessa escola um modelo de práticas pedagógicas inovadoras e um exemplo citado não só em Portugal, mas também em países estrangeiros, principalmente no Brasil. Faleceu a 22 de maio de 2010 de um enfarte do miocárdio enquanto via um jogo de futebol (no qual o Inter de Milão ficou campeão da europa) com os seus filhos.”
Ademar era maior do que isto. Seus improvisos o demonstram:
Improviso entre margens...
Talvez amanhã não chova
talvez possamos ainda submergir
o universo nunca é tão líquido
como quando o soletramos assim
ouve
talvez não precisemos de mapa
para lá chegar
as mãos e a memória bastarão.
(Ademar - 20.11.2007)
Até sempre!
Luzia é miúda. Parece ter 13 anos e não os seus já completados 23.
Olhos grandes, roupas escuras e pesadas, cabelos cacheados cuidadosamente presos, parece um pequeno pássaro, daqueles que caem dos ninhos nas árvores das ruas da cidade e ficam no chão, indefesos, perdidos, assustados. Mas Luzia não é um passarinho.
Luzia não fala. Se perguntada ou mandada, responde e obedece. Só isto. Parece trazer em si a fatalidade das mulheres que aceitam que a vida é restrita e sofrida, que o futuro é a reprodução do sofrimento das mães e das avós. E pronto. Missão cumprida e depois, quem sabe, o céu.
O céu, porque Luzia carrega consigo uma bíblia quase maior do que ela. E abre e faz de conta que a lê, mesmo na semi escuridão, e mesmo que não saiba ler.
Luzia foi à escola. Cursou até a quinta série, mas é incapaz de escrever e ler. Fez um teste de proficiência agora na cidade e seu nível de escolaridade não atinge a primeira série! Se tivesse continuado no seu vilarejo, talvez já fosse hoje professora de outros passarinhos. Ensinando-os a serem calados, mudos, tristes.
Quantas Luzias-passarinhos eu já conheci! Algumas puderam deixar de sê-lo. Ou melhor, deixaram de ser tristes e abriram e bateram asas, e aos poucos foram levantando vôo, às vezes solo, às vezes em bandos. Outras, fadaram-se ao seu destino. Presas no visgo da vida insana, injusta, feroz, morreram devagarzinho, silenciosamente. Ainda que aparentem estar vivas.
E saí de lá relembrando Torquato Neto e as pessoas que desafinam o coro dos contentes e das mulheres que escapam e das que são abatidas.