" Se a esperança se apaga e a Babel começa, que tocha iluminará os caminhos na Terra?" (Garcia Lorca)

02
Ago 09

 

 

 

 

 

Sem pedir licença, transcrevo a carta que minha irmã pescadora escreveu para nossa mãe. Uma carta que ela jamais receberá, mas da qual sabia sempre todas as palavras e sentimentos.


Beijo, Rita.



 

Minha mãe,

 

Me pega as vezes no coração a saudade do pai e da mãe. Lembranças de simplicidade, de emoções tolas exatamente por serem simples. “Luar do sertão”, toda vez que ouço, me vem a imagem da mamãe, com seus olhos escuros de cílios negros longos, os mesmos olhos de vovô e tia Judite.

Me pega também a consciência de sonhos que ela tinha...realizou pouco: a casa própria, a escola e o sustento dos filhos. Uma grande mulher, de coração generoso e alma farta. Remendou e cozeu por longos anos, segurou as rédeas de nossa educação enquanto pode, aturou uma doença cruenta e devastadora...mas não contava o que sonhava. Ouvi algumas vezes por detrás da porta, suas queixas à madrinha de não saber o que aconteceria conosco...falava de meu gênio, de minha má-criação, do fato de ser respondona...

Era uma mulher sertaneja, tenteando a vida na cidade grande.

Hoje olho o sofrimento relativo de nós, filhos. Sim relativo porque nosso sofrimento é por opção. Miramos um ponto no mundo e fomos. Fizemos com nossos filhos o que achávamos correto, às vezes mirando o que não fazer tendo como exemplo a mamãe...

À minha mãe devo algumas qualidades: generosidade e honestidade. Duas sombras de Apparecida a nos dirigir na vida. Sim, qualidades de seus três filhos, que até hoje quando pegos em desalinho, revolteiam as coisas e se sentem desconfortáveis diante da avareza e da falta de retidão.

Olho seus olhos na grande foto PB, que amparam um semi-sorriso a iluminar seu rosto. Uma foto de mulher quarentona, serena, pouco antes da viuvez. Cabelos negros curtos, sobrancelhas delineadas, nariz alongado, proporcional...uma linda mulher.

Me pega de jeito a saudade de alguém, que o tempo veio surrupiar entre o egoísmo adolescente e os anseios de liberdade. Para mim foi num instante, perder a mãe. Ela me mandando ir pra escola e morrendo, o pano enrolado no queixo, o cheiro de flor, o silêncio e o nada – tudo num instante.

E é por isso que quando ouço Luar do Sertão, sinto seus suspiros de saudade ao meu lado, ainda me guiando, ainda me acolhendo em sua generosidade. Por isso não gosto da saudade, não sei lidar com ela por causa do gosto de silêncio e nada. Mas cultivo flores, samambaias e comigo-ninguém-pode. Lembra ela, lembra o Luar do Sertão.

 

 

 

 

publicado por Adelina Braglia às 18:29

 

 

 

O novo livro do Lúcio.


Em Belém, nas bancas de revistas e jornais.


Para outras cidades, o pedido pode ser feito para jornal@amazon.com.br

publicado por Adelina Braglia às 17:20

 

Ao largo

Ademir Braz
(Para Charles Trocate, no seu caminho)

Já não te amo mais, cidade minha.
Quando, nas dobras da minha lembrança,
tange solitário um tropeiro a tropa
ruidosa dos meus desenganos,
sinto que não te amo mais:
desgosta-me o suor-néctar que exalas
por entre as pernas, se me enlaças e roças
no rosto teus seios imaturos de vestal;
trinco irado os dentes se me acenas doce,
etérea e sedutora, dentre as aves de rapina
que se fartam em tuas entranhas.
Aborrecem-me tuas ruas ensolaradas
ou noturnamente desertas e melancólicas.
Ralam-me o cristal das chuvas de dezembro
e o odor de frutas claras na água de verão.

Já não te amo mais, não te amo mais.
Um gigantesco mar nos põe ao largo
e singro, em velames, a esquecer teu cais.

Se navego teus rios, ouço vozes afogadas
de crianças e o canto deslembrado de pássaros;
vejo encantarias apanhadas em tarrafas
e garimpeiros presos ao farracho de sonhos
cravejado de diamante e turmalinas;
ouço adiante o canto sombrio da aldeã ilhada
em balsa de buritis a descer sem timoneiro
a voraz correnteza da memória, e o estrondo
infindo de um avião a retorcer-se em chamas,
facho imenso aceso sobre águas negras,
farândola insana para um deus insano.

Meu povo sumiu na mata e morreu à míngua
nos castanhais. Ouço-o, sinto-o ainda, e tanto!,
cidade minha... Já, em tuas ruas não anda
mais a triste e doida Zabelona a cavalgar
ao luar sua porca de bobs, nem sobre as casas
ressoa, pela madrugada, o agourento presságio
do rasga-mortalha.
Invés, na calha dura avulta
a gosma rubra de teus pobres, catados à margem
de trilhos e soltos na veia líquida de março.
São pobres peixes tangidos da sombra insalubre
dos brejais. Sujos de ferrugem e fuligem, vomita-os
o dragão chinês na gare de abandonos na periferia.
São lambaris que no mormaço vagam. Cegos, vagam.
Famintos, comem o paul do paiol apodrecido.

Para onde irão a seguir (além da cerca do latifúndio
e da cova anônima de indigentes sem luto),
sob o céu encauchado no forno das siderúrgicas?

Quem sabe os espera, ao acaso, numa esquina,
a perpendicularidade exata e única de uma bala?

Já não te amo mais, cidade minha. Não faz
sentido o amor, quando cegos conduzem
cegos, quando o pássaro perde o canto,
e tudo se precipita para lugar nenhum.
publicado por Adelina Braglia às 09:26

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