" Se a esperança se apaga e a Babel começa, que tocha iluminará os caminhos na Terra?" (Garcia Lorca)

12
Mar 09

 

 

 

 

O link sobre Fernando Pessoa, ao qual o post abaixo nos remete, vai dar numas lindas infogravuras sobre o poeta, feitas por João Luiz Roth.

Escolhi esta, entre tantas, porque olhei com ternura o cigarro pendurado à boca. O cigarro que há algumas décadas não matava ninguém. E que hoje nos mata, um a um, graças à altíssima concentração de alcatrão e nicotina, para garantir o vício de quem os consome e com isso os lucros escorchantes da indústria do fumo, tudo muito bem acatado e referendado pelo nosso Ministério da Saúde.
 
Muitas vezes pensei que a variação do lema que embala os maços de cigarro  – este produto pode matar – deveria compor a embalagem da maioria do que consumimos: o óleo, a carne, os iogurtes, até o inofensivo e delicioso tomate. Agrotóxicos, acidulantes, estabilizantes, tudo isso mata. Devagar e sempre. Mas, o cigarro mata mais e mais rápido. Será isso? ao Ministério importa a velocidade do feito?
 
Voltemos à imagem do poeta e do seu fascinante cigarro pendurado no “bico”. Uma volta no tempo em que, como dizia ele  éramos felizes e ninguém estava morto.
 
 
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.

No TEMPO em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.

Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo,
O que fui de coração e parentesco.
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino,
O que fui — ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui...
A que distância!...
(Nem o acho...)
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!

O que eu sou hoje é como a umidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes...
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas
lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim...
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!

Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais       copos,
O aparador com muitas coisas — doces, frutas o resto na sombra debaixo do alçado —,
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...

Pára, meu coração!
Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando o for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!...

O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...
 
(Aniversário - Álvaro de Campos)
 
 
 

 

 

publicado por Adelina Braglia às 09:17

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