Drummond escreveu que os ombros suportam o mundo.
Os meus mal me suportam.
Meus olhos também se rebelam e desejam não mais ver as iniqüidades à volta.
Minhas mãos ainda afagam, mas parecem ásperas, quase todo o tempo.
Meus pés carregam-me exaustos. Parecem, às vezes, recusar-se a caminhar.
Meus pensamentos vagam tão desordenadamente que temo que independam de qualquer lógica que eu possa impor.
Nos últimos dias cheiros súbitos da infância tomam de assalto meu nariz:
o cheiro do milho cozido, do pão recém saído do forno à lenha.
Dia destes senti até cheiro da chuva nas folhas da macaúba.
A boca também lembra gostos: manga caída do pé, café feito com o grão acabado de torrar. Coisas da avó.
Ah! e sinto muitas saudades. De todos os tempos da vida. E em cada um destes tempos, das pessoas que os marcaram.
E, quando amanhece o dia, recolho as saudades,
lavo os dentes e da boca retiro o gosto da manga,
obrigo meus pés a caminharem para onde preciso e nem sempre quero,
procuro fechar os olhos quando posso antever a iniqüidade,
cantarolo uma canção para fechar os ouvidos,
e acomodo os ombros. Meu peso é pouco.
Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.
Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.
Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teu ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo,
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.
(Carlos Drummond de Andrade - Os Ombros Suportam o Mundo)