Ser cordial era o pressuposto para a amizade, o amor, a convivência, fosse ela de que tipo fosse. Conviver formalmente, esporadicamente ou intensamente com alguém, pressupunha relações cordiais. Se não, não valia a pena. Enxotava-se logo o convivente para a categoria de inimigo. E, para esses, nenhuma comiseração. Menos ainda, cordialidade.
Sou de um tempo onde a justiça, não tinha alcunhas. Qualificativos do tipo “justiça social”. Ou coisas como “desenvolvimento sustentável”. Ou “democracia participativa”.
A justiça a ser alcançada era justiça. O desenvolvimento só o era, se fosse sustentável e não há democracia sem a participação popular. Simples assim.
Talvez por ser um tempo onde o inimigo era visível e palpável, e ainda que cercada e cerceada por terríveis percalços – a ditadura, a rigidez e o formalismo das relações maternas, a informação às vezes insuficiente sobre o vasto mundo de Raimundo - a felicidade, embutida numa imensa esperança, era quase permanente. Não a felicidade dos imbecis, mas aquela que me fazia suportar a dor, a frustração, porque era alcançável. Um dia, haveria morango com chantilly para todos. Eu não queria menos do que isso.
E a cordialidade era fundamental. Do jeito que a define o dicionário: cordial, relativo ao coração. Era preciso colocar o coração acima do ódio. Adversários também mereciam tratamento cordial, pois era do coração que vinha a força para derrotá-los. Inimigo, já disse acima, esse não. Era fora da categoria. Para ele, justiça. Aquela, sem adjetivações.
Meu tempo era o da canção que inspirava ou deprimia. Assim, sem meio termo. A canção que não fizesse esse papel, era descartada do ouvido. Sem piedade. Isso só não vale para as que aprendi na pequena infância, colada ao rádio que ganhei do pai, ouvindo Dalva de Oliveira, Isaurinha Garcia, Ivon Cury, Silvio Caldas. Estas ficaram impressas na memória afetiva, sem precisar justificar-se.
Descubro que, ao escrever isso, reconheço ser uma pessoa de temperamento desigual. Pior: reconheço-me nos meus velhos, quando diziam que o tempo deles era melhor. Mas, como eles – entendo isso hoje – meu tempo já é muito curto para tolerâncias.
Suportar a falta de cordialidade dos dias é, quem sabe, minha maior dificuldade. Desde a cordialidade do pedido de desculpas pelo pisar do pé dentro do ônibus e a falta dela quando olho em volta e me vejo sufocada por pequenos canalhas, na política, nos governos, na TV, na literatura, na música.
Talvez eu não seja de um tempo cordial. Mas acreditei tanto nisso que passou a ser minha verdade. Estivesse viva minha madrinha, sempre se atualizando com seu tempo, e talvez me dissesse: “isso é do tempo em que se amarrava cachorro com lingüiça”, denotando no interlocutor ingenuidade ou burrice. Sempre é bom poder escolher.
E, para combinar com o mote, um vídeo do tempo em que se era cordial, até com o General Garrastazu Médici. Para ilustrar meu chororô.