O texto é do Blog da Ana Diniz, aí ao lado. Eu não assino embaixo. Assino aqui. Logo na "cabeça". Obrigada Ana. O rosto do rapaz ficou impresso na minha cabeça. E o silêncio da reportagem arranhou a minha consciência. Mais do que a morte da menina, confesso. Porque, como você bem esclareceu, ela foi morta por um criminoso com ou sem atenuantes. Ele foi espancado pelo Estado, através dos seus agentes, que deveriam ser o melhor exemplo de combate à barbárie.
"A garota está morta, e o namorado – bem, o namorado está de cara inchada de tanto apanhar. Mas o repórter, o apresentador – ninguém fala nisso.
Durante e depois do caso, pessoas escreviam nos chats e comentavam na rua: “porque a polícia não usa um atirador de elite e mata ele logo?”
Essa pergunta é reveladora. Matar logo. Está ameaçando, deve ser morto. Mas deve?
Todas as pesquisas de opinião já feitas no Brasil são contra a pena de morte. Mas as pessoas pedem morte para criminosos – bandidos ou, como o rapaz, um criminoso eventual – com naturalidade: “porque a polícia não mata logo?”
Circula na rede um conjunto de slides chamado “sequestro na China”, em que um “negociador” mata um sequestrador a sangue frio. Os comentários são entusiasmados.
Outras perguntas e afirmações: “cadê os direitos humanos da garota?”; “agora, o pessoal dos direitos humanos vai proteger o assassino”. “Cara inchada é pouco. Deviam era dar muito nele”.
Pena de morte após um processo judicial regular, não pode; a polícia matar, pode. O que existe por detrás dessa ambivalência?
Eu não tenho muitas ilusões sobre a nobreza do ser humano, mas acredito que ninguém quer voltar à barbárie. Então vou tratar dessas perguntas – e da cara inchada do rapaz.
A primeira confusão é quanto “ao pessoal dos direitos humanos”.
O principal antagonista deste “pessoal” é uma certa quantidade de policiais que acha simples e fácil justificar o que não faz culpando “esse pessoal”. Um dia destes, uma amiga minha sofreu um seqüestro relâmpago e, como sempre, a polícia acabou prendendo o menor “laranja”. O delegado mandou as vítimas (eram duas) procederem à identificação do preso cara a cara com ele; fez com que o menor fosse espancado; depois, despachou todos para a delegacia da criança e do adolescente, dizendo que “vou mandar, mas não vai adiantar, porque tem uma juíza aí que vive passando a mão na cabeça desses pivetes”.
Agora vamos ver o que o delegado tinha por obrigação fazer e não fez:
- ele não fez periciar o local do crime, nem o automóvel, nem os óculos que um dos ladrões deixou cair; aliás, ele sequer foi ao local;
- ele não relacionou testemunhas – havia mais de dez – para o inquérito;
- ele não ofereceu às vítimas o banco de imagens, para identificação dos bandidos adultos;
- ele não protegeu as vítimas de uma desforra futura, mas obrigou-as à situação de constrangimento;
- ele não mandou fazer e nem fez qualquer busca na sua jurisdição.
A culpa é da juíza que apenas quer que se cumpra a lei relativa aos menores? Quando um policial bate, ou manda bater num detido ou preso, está-se nivelando a ele, está respondendo com simples violência a violência cometida. Não há satisfação justa para a vítima, nisso: há, tão somente, barbárie. E nenhum trabalho profissional, policial. Saem da delegacia a vítima e o criminoso, mandados para outro lugar: pronto, livrou-se desses. Se os bandidos fossem presos, não haveria prova alguma contra eles, a não ser o depoimento das vítimas – que poderiam ou não identificá-los, porque o trauma de um seqüestro impede segurança na identificação. E isto graças à atuação do delegado – e não ao “pessoal dos direitos humanos”.
A segunda confusão é quanto a “atirador de elite”. Um tiro de precisão é algo tão difícil que, nas Olimpíadas, nos campeonatos de tiro ao alvo – com tranqüilidade, tempo para ajustar a mira, armas perfeitas, alvo delimitado, imóvel e perfeitamente visível – são raríssimos os campeões que conseguem os pontos máximos, ou seja, acertar na mosca em todos os tiros. Imagine-se numa situação de seqüestro, com o alvo movendo-se num local pouco iluminado e em condições de extrema tensão! A probabilidade de errar o alvo é alta demais para justificar o risco.
A terceira questão é quanto ao “mata ele, logo”. Afinal de contas, nós queremos uma polícia feita de assassinos a sangue frio? E para que? É bom lembrar que todo o excesso de poder conferido ao Estado, ou aos órgãos do Estado – entre os quais a polícia – volta-se contra quem o concedeu. Desde os tempos da guarda pretoriana de César – a primeira polícia organizada de que se tem notícia histórica. Polícia com ordem de matar acaba matando indiscriminadamente. Afinal, policial também erra – como qualquer um que não tenha nenhum controle sobre si.
A quarta questão é quanto aos direitos humanos da vítima. Será que ninguém vê que ela teve seus direitos violados pelo bandido, e não pela polícia? e que não é violando mais direitos humanos que se corrige a primeira violação? e que se a polícia fizer o que o bandido faz, está se igualando a ele, e deixando de ser um instrumento de justiça?
Matar e bater não resolve nada. Matar e bater somente piora tudo. Por acaso a cara inchada do rapaz vai suprir a falta de Eloá? Consolo teve a família, com certeza, com o bem que se gerou da morte da moça, com os transplantes de seus órgãos – nunca, com a cara inchada que a polícia ofereceu ao vídeo. Uma mãe transtornada pode até sentir-se melhor depois de bater, porque extravasou sua raiva; mas um espancamento feito por terceiro não fará com que se sinta melhor.
A quinta questão é quanto ao silêncio. Ele é cúmplice, e os jornalistas que exibem vídeos com um preso de cara inchada, sem comentários, alegando a pressão da opinião pública, tornam-se cúmplices da violência, e ajudam a piorar tudo. "