" Se a esperança se apaga e a Babel começa, que tocha iluminará os caminhos na Terra?" (Garcia Lorca)

22
Ago 08

 

 
“(...) Regra sem exceções conhecidas: a vontade exasperada de afirmar sua diferença é própria de quem se sente ameaçado pela similaridade do outro. No caso, os membros da turba gritam sua indignação porque precisam muito proclamar que aquilo não é com eles. Querem linchar porque é o melhor jeito de esquecer que ontem sacudiram seu bebê para que parasse de chorar, até que ele ficou branco. Ou que, na outra noite, voltaram bêbados para casa e não se lembram em quem bateram e quanto.

Nos primeiros cinco dias depois do assassinato de Isabella, um adolescente morreu pela quebra de um toboágua, uma criança de quatro anos foi esmagada por um poste derrubado por um ônibus, uma menina pulou do quarto andar apavorada pelo pai bêbado, um menino de nove anos foi queimado com um ferro de marcar boi. Sem contar as crianças que morreram de dengue. Se não bastar, leia a coluna de Gilberto Dimenstein na Folha de domingo passado.

A turba do "pega e lincha" representa, sim, alguma coisa que está em todos nós, mas que não é um anseio de justiça. A própria necessidade enlouquecida de se diferenciar dos assassinos presumidos aponta essa turma como representante legítima da brutalidade com a qual, apesar de estatutos e leis continuam sendo vítimas dos adultos(...)
 
 (A turba do "pega e lincha" - Contardo Calligaris/ Folha de São Paulo)
 
 
 
Fui buscar o trecho ao artigo acima no meu arquivo, para me ajudar a compreender o dialogo que ouvi ontem. Dois jovens, uniformizados, esperavam ônibus ao meu lado e conversavam animadamente sobre um episódio que haviam acabado de presenciar. O resumo do que eu ouvi; quando saiam da escola, um garoto foi apanhado por taxistas,porque havia acabado e roubar uma bolsa e fugira de bicicleta.
 
O garoto foi arrancado da bicicleta, imediatamente “apropriada” por um dos taxistas que a colocou no porta-malas do carro, enquanto os outros decidiam quem dava o primeiro chute no ladrão.  
Eu não consegui – não quis, na verdade – ouvir o resto da conversa. Andei mais um quarteirão para esperar o ônibus na parada seguinte e,  enquanto caminhava, aproveitava para respirar e respirar e respirar.
 
É esse o tempo real da barbárie. Não é o “virtual”, da guerra contra a Geórgia. Mas é mais cômodo nos concentrarmos nela.
 
Sugestões de epitáfio para a nossa iniquidade, que podemos escolher entre o verso e o texto.
O autor é um só: Bertold Brecht.
 
 
 
Se os tubarões fossem homens, eles fariam construir resistentes caixas do mar, para os peixes pequenos com todos os tipos de alimentos dentro, tanto vegetais, quanto animais.

Eles cuidariam para que as caixas tivessem água sempre renovada e adotariam todas as providências sanitárias, cabíveis se por exemplo um peixinho ferisse a barbatana, imediatamente ele faria uma atadura a fim que não morressem antes do tempo.

Para que os peixinhos não ficassem tristonhos, eles dariam cá e lá uma festa aquática, pois os peixes alegres tem gosto melhor que os tristonhos.

Naturalmente também haveria escolas nas grandes caixas, nessas aulas os peixinhos aprenderiam como nadar para a guela dos tubarões.

Eles aprenderiam, por exemplo a usar a geografia, a fim de encontrar os grandes tubarões, deitados preguiçosamente por aí. aula principal seria naturalmente a formação moral dos peixinhos.

Eles seriam ensinados de que o ato mais grandioso e mais belo é o sacrifício alegre de um peixinho, e que todos eles deveriam acreditar nos tubarões, sobretudo quando esses dizem que velam pelo belo futuro dos peixinhos.

Se encucaria nos peixinhos que esse futuro só estaria garantido se aprendessem a obediência.

Antes de tudo os peixinhos deveriam guardar-se antes de qualquer inclinação baixa, materialista, egoísta e marxista e denunciaria imediatamente aos tubarões se qualquer deles manifestasse essas inclinações.

Se os tubarões fossem homens, eles naturalmente fariam guerra entre sí a fim de conquistar caixas de peixes e peixinhos estrangeiros.

As guerras seriam conduzidas pelos seus próprios peixinhos. Eles ensinariam os peixinhos que entre eles os peixinhos de outros tubarões existem gigantescas diferenças, eles anunciariam que os peixinhos são reconhecidamente mudos e calam nas mais diferentes línguas, sendo assim impossível que entendam um ao outro.

Cada peixinho que na guerra matasse alguns peixinhos inimigos

Da outra língua silenciosos, seria condecorado com uma pequena ordem das algas e receberia o título de herói.

Se os tubarões fossem homens, haveria entre eles naturalmente também uma arte, havia belos quadros, nos quais os dentes dos tubarões seriam pintados em vistosas cores e suas guelas seriam representadas como inocentes parques de recreio, nos quais se poderia brincar magnificamente.

Os teatros do fundo do mar mostrariam como os valorosos peixinhos nadam entusiasmados para as guelas dos tubarões.

A música seria tão bela, tão bela que os peixinhos sob seus acordes, a orquestra na frente entrariam em massa para as guelas dos tubarões sonhadores e possuídos pelos mais agradáveis pensamentos .

Também haveria uma religião ali.

Se os tubarões fossem homens, ela ensinaria essa religião e só na barriga dos tubarões é que começaria verdadeiramente a vida.

Ademais, se os tubarões fossem homens, também acabaria a igualdade que hoje existe entre os peixinhos, alguns deles obteriam cargos e seriam postos acima dos outros.

Os que fossem um pouquinho maiores poderiam inclusive comer os menores, isso só seria agradável aos tubarões pois eles mesmos obteriam assim mais constantemente maiores bocados para devorar e os peixinhos maiores que deteriam os cargos valeriam pela ordem entre os peixinhos para que estes chegassem a ser, professores, oficiais, engenheiro da construção de caixas e assim por diante.

Curto e grosso, só então haveria civilização no mar, se os tubarões fossem homens.
 
 
(...)
 

Realmente, vivemos tempos sombrios!
A inocência é loucura.
Uma fronte sem rugas denota insensibilidade.
Aquele que ri ainda não recebeu a terrível notícia
que está para chegar.
Que tempos são estes, em que é quase um delito
falar de coisas inocentes, pois implica em silenciar
sobre tantos horrores.
 
(Tempos sombrios)

 

publicado por Adelina Braglia às 18:49

 

Passeando pelo blog da Inês, aí ao lado, descobri que devo aos portugueses do Porto três das melhores coisas das minhas memórias de infância. Assim ela começou seu post:

 

“Além do vinho do Porto, das tripas, dos filetes de polvo com arroz do mesmo, das iscas de bacalhau da Ribeira, do arroz-doce, do culto das camélias, do cimbalino, da francesinha, do fino, do rock português (Chico Fininho de Rui Veloso), do cinema português (Aurélio Paz dos Reis (1862-1931), do liberalismo (1820) e da República (1891- 31 de Janeiro), o Porto inventou a noitada de S. João (...)”

   

E eu escrevo este para dizer que embora a Vila Madalena  - onde nasci e morei até os 25 anos - fosse fundamentalmente um bairro português, com algumas pinceladas de italianos e espanhóis, eu nunca havia pensado que devia aos portugueses do Porto tanta memória e doçura.

 

Agradeço o pé de camélias do quintal da madrinha, cujas flores tinham um cheiro doce que entrava narina adentro e que, embora parecendo suave tinha força a ponto de eu senti-lo do outro lado da rua, da janela do quarto da minha mãe.

 

Agradeço o cheiro bom do arroz-doce com raspas de limão e o gosto  que remanesce na boca pela vida afora,ainda que eu não o coma há anos. Ah! e agradeço muito a alegria das  festas de Santo Antônio,  de São João e de São Pedro.

 

Nessas festas as ruas da Vila ficavam coalhadas de fogueiras e os vizinhos traziam pratos de doces e salgados para as calçadas. As crianças e os jovens ensaiavam a dança da quadrilha semanas antes e os meninos pintavam a carvão no rosto o bigode que um dia presumiam poder ter. As meninas passavam batom, usavam fitas coloridas na cabeça e a grande disputa era a honra de ser a noiva do casamento. E o grande, o inenarrável crime que cometíamos era, nós, as crianças, bebericar escondidas na pia da cozinha da madrinha os restos de quentão deixados no fundo dos copos.

 

E agradeço, especialmente, ter acreditado por muito tempo, embalada pelo cheiro das camélias, pelo gosto do arroz-doce e pela alegria das quadrilhas, que era possível ser feliz como coisa permanente, para além daqueles cheiros e gostos e calor das fogueiras.

 

E ainda que eu conheça a maravilhoda gravação de Dulce Pontes, era Amália Rodrigues quem cantava nos quintais da minha infância.

  

 

 

 

 

 

publicado por Adelina Braglia às 02:49

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