" Se a esperança se apaga e a Babel começa, que tocha iluminará os caminhos na Terra?" (Garcia Lorca)

17
Jan 08

 

 

"deus tem que ser substituído rapidamente por poe-
mas, sílabas sibilantes, lâmpadas acesas, corpos palpáveis,
vivos e limpos.

a dor de todas as ruas vazias.

sinto-me capaz de caminhar na língua aguçada deste
silêncio. e na sua simplicidade, na sua clareza, no seu abis-
mo.
sinto-me capaz de acabar com esse vácuo, e de aca-
bar comigo mesmo.

a dor de todas as ruas vazias.

mas gosto da noite e do riso de cinzas. gosto do
deserto, e do acaso da vida. gosto dos enganos, da sorte e
dos encontros inesperados.
pernoito quase sempre no lado sagrado do meu cora-
ção, ou onde o medo tem a precaridade doutro corpo.

a dor de todas as ruas vazias..."

 

 

(Al Berto - Trecho do poema  notas para o diário.)

 

 

 

publicado por Adelina Braglia às 16:56

 

Uma Pessoa ama no que tem o que não tem quando ama,
disse o Poeta ali transcrito.
E pareceu subentendido no poema
que quando amamos no que temos o que não temos quando amamos,
esse sentimento é frustrante porque necessariamente bom.
Seria isso dizer que só amamos as virtudes, e se assim fosse,
- Ah! Seria tão bela a humanidade! -
invejaríamos apenas boas qualidades.
Por imitação ou osmose, seríamos apenas generosos.
bons, fraternos, solidários.
Viveríamos a doce ilusão de que a Outra não é também o espelho
aaquilo que somos e não gostamos,
ou do que ressaltamos em nós.
E por nos olharmos nela como quem olha parte do seu rosto num naco de espelho,
nos aborrece ser também o que não admiramos.
 
O barco pára, mas eu larguei os remos antes disso,
numa margem da qual me afastei conscientemente.
E digo isso sem angústia, porque de nada eles me serviriam:
eu não sei remar. E aprender, nunca quis.
Deixei-me ir , “de bubuia”, consciente do risco:
fiei-me sempre no fato de saber boiar.
E, suicida potencial,
- mas não daquelas que literalmente põem fim à vida -
escolhi, mesmo com dor,
os rios serenos ao mar revolto.
 
Deixa que eu aproveite o verso do Poeta para afirmar:
não há beijos de mel em boca alguma.
Beijos são assim: boca na boca,
sensação boa ou sensação ruim.
E eu, particularmente, nunca sonhei com bocas.
Sonhei com bocas compondo rostos onde os olhos sempre se destacaram.
E as bocas tinham mãos, tinham calor no abraço.
E um riso solto quando havia razões para rir.
Não consigo inventar razões de riso:
elas precisam existir, para que eu me alegre.
 
Meus braços não vingam mágoas.
Eles abraçam forte, se a vontade vem de dentro,
ou educadamente, quando é necessário e eu me obrigo.
E ainda quando são assim, educados,
são abraços e só desejam o bem.
Não abraço quem não amo.
Apenas não amanheço todos os dias com a fraternidade exposta na vitrine.
Meus braços não me vingam.
São instrumentos de paz.
O que me vinga é a minha própria insanidade,
Que cultivo, reconheço.
E gosto.
 
Amei pouco.
Numa Outra amei a solidariedade,
o despego aos seus próprios desejos enquanto me fortalecia com a sua presença e o seu amor,
para eu alcançar os meus.
Desse amor egoísta não me vanglorio e me arrependo,
mas arrependimento é um sentimento inútil,
que não alivia a dor do outro.
 
No Outro amei o apego ao risco,
num Outro os olhos vivos, as mãos serenas, a fala mansa,
e numa Outra a enorme aptidão para a felicidade.
 
E são tão poucos os meus amores,
- e cada um foi um pouco aquilo que eu era
e o que eu  nunca consegui ser –
que seus retratos na parede da memória não compõem nenhum modelo.
Quem sabe tivesse eu amado mais!
Não, não acrescento “melhor”,
porque amei cada um com o que de melhor eu pude ser.
 
Por isso te incomoda minha falta de padrão,
não busco em você a solidariedade,
o apego ao risco,
a fala mansa
ou a aptidão para a felicidade.
Não tenho modelos. Não busco nada.
Gosto ou não gosto, a cada amor
 
As pessoas se completam?
Mentira.
Elas se atraem e se repelem e estar junto é a capacidade de lidar com isso,
numa química de alegria e dor.
E nem sempre a primeira prevalece sempre.
E isso não quer dizer nada além disso.
 
Não gosto de re + começar.
Gosto de continuar, tentando não repetir erros anteriores,
e se perceber que não há caminho,
ou que é mais difícil isso do que aquilo,
o barco sem remos onde navego permanece na água.
E segue, ainda que mais devagar.
Porque não tenho também a presunção nem o desejo
De ser a grande Outra,
Aquela a quem o Poeta diz:
 
Dá-me as mãos, a boca, o ter ser. 
Façamos desta hora um resumo 
Do que não poderemos ter. 
Nesta hora, a  única, 
Sê a Outra.”
Eu não sou essa. Não quero ser.
 
 

(*) Sobre o poema  "A OUTRA - Amamos sempre no que temos" , Fernando Pessoa.

publicado por Adelina Braglia às 11:51

Janeiro 2008
Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab

1
2
3
4
5

6
7
8
9
10

13
14
16

20
21
22
26

27
28
29
31


Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

subscrever feeds
mais sobre mim
pesquisar
 
blogs SAPO