Uma Pessoa ama no que tem o que não tem quando ama,
disse o Poeta ali transcrito.
E pareceu subentendido no poema
que quando amamos no que temos o que não temos quando amamos,
esse sentimento é frustrante porque necessariamente bom.
Seria isso dizer que só amamos as virtudes, e se assim fosse,
- Ah! Seria tão bela a humanidade! -
invejaríamos apenas boas qualidades.
Por imitação ou osmose, seríamos apenas generosos.
bons, fraternos, solidários.
Viveríamos a doce ilusão de que a Outra não é também o espelho
aaquilo que somos e não gostamos,
ou do que ressaltamos em nós.
E por nos olharmos nela como quem olha parte do seu rosto num naco de espelho,
nos aborrece ser também o que não admiramos.
O barco pára, mas eu larguei os remos antes disso,
numa margem da qual me afastei conscientemente.
E digo isso sem angústia, porque de nada eles me serviriam:
eu não sei remar. E aprender, nunca quis.
Deixei-me ir , “de bubuia”, consciente do risco:
fiei-me sempre no fato de saber boiar.
E, suicida potencial,
- mas não daquelas que literalmente põem fim à vida -
escolhi, mesmo com dor,
os rios serenos ao mar revolto.
Deixa que eu aproveite o verso do Poeta para afirmar:
não há beijos de mel em boca alguma.
Beijos são assim: boca na boca,
sensação boa ou sensação ruim.
E eu, particularmente, nunca sonhei com bocas.
Sonhei com bocas compondo rostos onde os olhos sempre se destacaram.
E as bocas tinham mãos, tinham calor no abraço.
E um riso solto quando havia razões para rir.
Não consigo inventar razões de riso:
elas precisam existir, para que eu me alegre.
Meus braços não vingam mágoas.
Eles abraçam forte, se a vontade vem de dentro,
ou educadamente, quando é necessário e eu me obrigo.
E ainda quando são assim, educados,
são abraços e só desejam o bem.
Não abraço quem não amo.
Apenas não amanheço todos os dias com a fraternidade exposta na vitrine.
Meus braços não me vingam.
São instrumentos de paz.
O que me vinga é a minha própria insanidade,
Que cultivo, reconheço.
E gosto.
Amei pouco.
Numa Outra amei a solidariedade,
o despego aos seus próprios desejos enquanto me fortalecia com a sua presença e o seu amor,
para eu alcançar os meus.
Desse amor egoísta não me vanglorio e me arrependo,
mas arrependimento é um sentimento inútil,
que não alivia a dor do outro.
No Outro amei o apego ao risco,
num Outro os olhos vivos, as mãos serenas, a fala mansa,
e numa Outra a enorme aptidão para a felicidade.
E são tão poucos os meus amores,
- e cada um foi um pouco aquilo que eu era
e o que eu nunca consegui ser –
que seus retratos na parede da memória não compõem nenhum modelo.
Quem sabe tivesse eu amado mais!
Não, não acrescento “melhor”,
porque amei cada um com o que de melhor eu pude ser.
Por isso te incomoda minha falta de padrão,
não busco em você a solidariedade,
o apego ao risco,
a fala mansa
ou a aptidão para a felicidade.
Não tenho modelos. Não busco nada.
Gosto ou não gosto, a cada amor
As pessoas se completam?
Mentira.
Elas se atraem e se repelem e estar junto é a capacidade de lidar com isso,
numa química de alegria e dor.
E nem sempre a primeira prevalece sempre.
E isso não quer dizer nada além disso.
Não gosto de re + começar.
Gosto de continuar, tentando não repetir erros anteriores,
e se perceber que não há caminho,
ou que é mais difícil isso do que aquilo,
o barco sem remos onde navego permanece na água.
E segue, ainda que mais devagar.
Porque não tenho também a presunção nem o desejo
De ser a grande Outra,
Aquela a quem o Poeta diz:
“Dá-me as mãos, a boca, o ter ser.
Façamos desta hora um resumo
Do que não poderemos ter.
Nesta hora, a única,
Sê a Outra.”
Eu não sou essa. Não quero ser.
(*) Sobre o poema "A OUTRA - Amamos sempre no que temos" , Fernando Pessoa.