" Se a esperança se apaga e a Babel começa, que tocha iluminará os caminhos na Terra?" (Garcia Lorca)

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Set 07

 

Ouço conversas como se assistisse TV. Não há interação, ainda que esteja com pessoas que estimo, ainda que esteja ouvindo o que dizem.
Às vezes isso é tão forte que tenho dificuldade para voltar à roda.
Sem conseguir estar atenta ao que faço, mesmo quando quero fazê-lo, hoje reproduzi três vezes a mesma música , na tentativa de ouvir o verso que mais gosto, e quando percebia, ele já havia passado.
Distraio-me no ônibus e já desci várias vezes um ponto adiante de onde pretendia. Esqueço onde deixei o cigarro, perco os óculos sobre a pequena mesa! Perco também fatos e datas na memória.
Há alguns anos me pus a escrever furiosamente durante uma noite e varei a madrugada,
porque temia que alguns fatos, que já havia soterrado na memória, desaparecessem definitivamente.
Se temo que isto seja indício de doença degenerativa, Alzheimer ou correlata, passo um tempo lembrando os nomes das pessoas da família.
Vou remontando a árvore genealógica e, súbito, perco-me nela, porque um nome me faz recordar um cheiro, uma tarde, uma brincadeira. E lá fica a árvore, inconclusa!
E aí me distraio de novo, querendo entender porque gravo coisas aparentemente incompreensíveis: a blusa de bolinhas da minha professora de português, o dia em que a Nena andou de triciclo no porão da casa, a primeira vez que vi na mão da Cleide uma capa de revista com a foto da Leny Eversong.
O bolo de cesta de frutas do meu aniversário de 4 anos, e a minha roupa suja de sorvete e a Lula, aborrecida, subindo comigo a rua Augusta, rumo às aulas de canto da  professora Zita Martins.
A aflição da Annez na calçada do Sindicato dos Químicos, por causa da sua tese que eu datilografei - céus! - na Colônia de Férias dos Metalúrgicos. E naquela semana, no frio de agosto, a notícia que veio pelo rádio da morte de Juscelino.
Os olhos brilhantes do Zé Carlos Maranhão na véspera da festa a que ele não foi
e que depois soubemos que não fora porque havia "caído". Maranhão morreu sob tortura brutal no DOI-CODI.
Uma conversa com a Fernanda, quando íamos à casa da Maria Alice, e ela me falava sobre seu pai. A performance do Paschoal na sala de aula quando nem sequer sabíamos o que era performance!
Rosa chegando na frente do Botequim, galopando sua moto, Vera e eu passando o cabelo a ferro! O garoto de queixo caído ao me ver entrar na vila, pois nunca havia visto uma mulher tão alta.
Nada parece unir essas lembranças, mas,  penso agora, que todas têm em comum a sensação de que eu estava intensamente presente nelas.
Um cheiro de manga invade minhas narinas e lembro dos meus pés cheios de espinhos
depois que pisei nas folhas de macaúba que fui colher para trazer para minha mãe. E ao chegar, aos prantos na casa da avó, meu pai tirou cada espinho com paciência e delicadeza, e a avó foi buscar uma manga, daquelas enormes que ela escondia na despensa.
Agora sou eu a avó, e interrompo esse devaneio ao ouvir Beatriz:
Ei, Vó, você não vai dormir?
E o real ocupa seu lugar.
 
 
 
Atualizada hoje, 07.09.2007
 
 
Chegou agora, por e-mail, um complemento da Lula, sobre o bolo cesta de frutas.
Transcrevo o trecho, nesta  memória, agora a quatro mãos:
"..... e gostaria de comentar sobre o bolo. Fiquei ao lado de seu Osvaldo enquanto ele fazia o bolo. Sempre o ajudava na cozinha. Lembra o  bolinho baiano? Aquele bolo era uma tentação e a maçã me encantava. Era rara e muito cara e para mim foi a glória da festa. Esperei ansiosa o "parabéns" só para pegar a maçã  e a peguei. Até hoje me lembro do gosto bom, mesmo não sendo mais minha fruta preferida.
Beijos, Lula. "
 
 
Beijo pra você, também. Com gosto de maça. Daquela maça da  cesta.
 
 
publicado por Adelina Braglia às 01:24

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