Há dias uma tragédia ocupa as páginas de jornal,desde que um pai esqueceu seu filho de 1 ano e 4 meses dentro do carro e o bebê, após 5 horas ali, teve uma parada cardiorespiratória e morreu. O pai é jovem, tem 31 anos, é biólogo e, notadamente, pertence à classe média paulistana.
Este não é o primeiro caso dos últimos anos, mas todos os casos de mães e pais que abandonam seus filhos, ou que os espancam e até quem os mata, me angustiam, porque sempre acreditei que em sã consciência ninguém é cruel a este ponto.
Na matéria de hoje, no Estadão, alguns psicólogos fazem depoimentos sobre a imensidão do sentimento desta culpa e todos, inclusive Maria Rita Kehl - de quem sou ardorosa admiradora - preocupam-se em não transformar o pai em réu. É ela quem explica:
“Nosso cotidiano é todo articulado e às vezes não percebemos quando acontece algum imprevisto ou quando algo sai fora da rotina. Um exemplo é não notar que uma rua virou contramão e, mesmo assim, pegá-la. Não podemos simplesmente achar que esse pai é um monstro irresponsável.”
Não quero falar da dor da perda. Eu entendi que a extensão da dor de perder um filho, antes de saber da existência dos psicólogos, quando ouvi minha avó – que perdera um filho num acidente de caminhão há mais de 20 anos – dizer: “ perder um filho não é coisa de Deus, porque os pais sempre devem morrer antes.”
O que vem me incomodando é lembrar das mães que abandonam seus filhos em hospitais ou em latões de lixo, e, especialmente aquela que há mais ou menos 1 ano - jovem, pobre, desestruturada, desempregada e visivelmente desestabilizada nas entrevistas - havia deixado seu bebê flutuando num pedaço de madeira e que depois foi salvo das águas, como uma miúda Moisés de fraldas, e virou manchete por semanas. Nenhum desses bebês morreu. As mães, consciente ou inconscientemente, pretendiam salvar seus filhos, deixar que eles durassem mais do que elas, segundo a santa teoria da minha avó.
O que me incomoda é que todas, sem exceção, são tratadas pela imprensa como rés, como monstros desumanos. A elas nenhuma confraria de psicólogos vem socorrer com suas análises, até porque a mídia sequer propõe pauta para discutir a dor dos desvalidos da fortuna. É como se a rotina da miséria, do abandono, do desespero não tivesse o mesmo peso da rotina estafante da classe média, "estressada" pelo trânsito, pelo medo da perda do emprego, ou pela angústia de não conseguir pagar a prestação do carro ou do cartão de crédito no próximo mês.
Para as jovens mães nunca uma justificativa como a do psicoterapeuta e professor da PUC-SP Antonio Carlos Amador Pereira, que disse sobre o jovem pai::
“Houve um lapso de memória. Ele esqueceu que a criança estava no carro. Isso não é incomum num mundo estressante como o de hoje”,
Para a classe média, a rotina é argumento suficientemente sólido para explicar o lapso. Para as jovens mães, a rotina da fome, do desespero, da falta absoluta de políticas públicas que as ampare com creches para que possam deixar seus bebês e voltar a batalhar pela vida, não explicam um lapso de afeto e parecem ser agravantes do crime.
“A dor é absoluta, nenhum tratamento nem ninguém consegue retirar a culpa que ele deve estar sentindo neste momento. Esse sentimento pode seguir pelo resto da vida. Só ele conseguirá se perdoar.” diz sobre a dor do jovem pai o psicólogo Miguel Perosa, também professor da PUC.
A dor das jovens mães, essa ninguém analisou. Ela não vende jornais. Afinal, no caso delas, o que é vendável é só a consequência da tragédia de suas vidas.
(*) trecho da letra De mais ninguém, de Marisa Monte e Arnaldo Antunes.