(Foto roubada no Bazar do Santos Passos)
(Foto roubada no Bazar do Santos Passos)
Como pode a voz que vem das casas ser a da justiça
se os pátios estão desabrigados?
Como pode não ser um embusteiro aquele que ensina os famintos outras coisas que não a maneira de abolir a fome?
Quem não dá o pão ao faminto quer a violência.
Quem na canoa não tem lugar para os que se afogam
não tem compaixão.
Quem não sabe de ajuda, que cale.
(Bertold Brecht)
(No mundo há muitas armadilhas)
Quando me ouves e não me escutas,
quando me olhas e não me vês,
e se eu te abraço e não sentes meu abraço,
que nome dás a esta minha proximidade de ti?
Atada a mim, carrego sintomas.
Atada a ontem, a anteontem,
o dia de hoje me parece já vivido.
Mas, há música nova na minha cabeça.
Significa que hoje o repertório pode melhorar.
O carro de boi rangia a cada parada. Carro bom, gemedor, como na música de Gilvan Chaves.
Eu já havia passado pelas bancas de doces caseiros - batata doce, batata roxa, abóbora em calda ou em pedaços - olhado os bordados, as cestas de vime, as bonecas de pano.
Mais acima, no Parque da Água Branca, foi reproduzida a casa de pau-a-pique, onde a cozinheira fazia o café no fogão à lenha e a broa assada de milho (a cavaca). O cheiro do café torrado e moído entrou narina a dentro. Quase ouvi a voz do avô perguntando se eu queria um pedaço de queijo para molhar no café quente.
Eu, que nem preciso muito deste estímulo para lembrar das férias na casa da avó, sentei à sombra, ouvi música caipira e fiz minha viagem. A estrada de ferro da Cia. Paulista, a estação de Rincão. O pai que sempre ia me buscar no final de janeiro.
A tia carinhosa, fazendo o pão da semana nas quintas-feiras. Eu ganhava sempre um pão pequeno, recém saído do forno, e cheio de manteiga. Os primos ficavam com inveja desta predileção, mas ser a neta mais velha era suficiente para a garantia de privilégios.
Privilégio era também levar o pequeno caldeirão com o almoço do avô. Amarrado fortemente com um pano de prato, para que a tampa não caísse, eu o levava para a roça que, certamente, era próxima à casa, mas na minha memória infantil, era um longo caminho, cheio de trilhas e flores amarelas. Ipês. E mangueiras! Mangas pelo chão, cheirosas.
O avô ensinava que não se devia desprezar as que estavam bicadas pelos passarinhos. Ele dizia que estas eram as mais doces e que bastava levá-las ao rio, lavar e comer. Enquanto ele almoçava, essa era a minha diversão.
Na volta, a avó sempre à porta da casa, me esperava com o suco. De limão. Dizia que era para espantar o calor. Em seguida, o meu almoço: arroz, feijão, um ôvo caipira com a gema mole. Às vezes, uma galinha cozida com muito quiabo e em ocasiões especiais, costelas de porco defumadas, assadas na brasa. Ou polenta com carne de porco frita.
Aos domingos, o sacrossanto macarrão caseiro, molho de tomates sem pele e sem sementes e um forte cheiro de mangericão. Nos domingos também os doces estavam disponíveis: compota de goiaba, doce de mamão verde, doce cremoso de banana. E doce de laranja da terra.
E até agora uma vontade imensa de afastar o tempo e voltar.
São Paulo é minha cidade natal. Deixei-a há 30 anos e fui aventurar minha fantasia pelo norte do Brasil, mas a ela retorno regularmente. E a cada volta, descubro coisas, remexo minhas memórias da infância e da adolescência, filtro sensações e sentimentos.
Desta vez descubro que a casa da mãe do Chico e do Paulo Caruso transformou-se num simpatico bar. São Bento, é o nome. Porém, a esquina da Aspicuelta com a Mourato Coelho perdeu com isto, para mim, seu encanto. Aquela casa tinha um quê de resistência!
O metro avança em linhas verdes, azuis e vermelhas, mas os ônibus elétricos ainda dão pane no cruzamento da São Luiz com a Ipiranga. E perto do largo do Paissandú, ainda existe o terrível e delicioso churrasco grego.
Olho São Paulo hoje com o afeto que não tinha pela cidade quando aqui vivia. E a cidade perece perceber que a idade me trouxe a condescendência que a juventude não me permitia ter.
Olho pra mim e vejo,
além do retângulo da máquina,
meu tempo preso no espelho.
É um passatempo brincar de aprisioná-lo.
Eu não consigo me apropriar do tempo.
Ele é que toma conta de mim.
Assim, brinco com ele
e o retenho no retângulo da máquina,
mas sei que me aprisiono com ele.
Tenho um vazio no peito,
uma tristeza nas mãos,
uma dor fininha cá dentro.
Vou parar de brincar com o tempo.