" Se a esperança se apaga e a Babel começa, que tocha iluminará os caminhos na Terra?" (Garcia Lorca)

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Abr 06
 

Eu acordo na madrugada e sinto o cheiro do chão molhado pela chuva. Desço as escadas. Aqueço a água para o café: apenas uma xícara, no microondas. Uma pequena colher de café solúvel. Três gotas de adoçante. Nesses poucos minutos, o cheiro forte do café  se sobrepõe ao cheiro do chão molhado pela chuva.

Como ando cada vez mais esquecida de datas, cenas e fatos, parece que os cheiros é que reavivam minha memória. Acho que faço dos cheiros a defesa contra a esclerose que virá, infelizmente virá.

O cheiro doce do meu café lembrou o cheiro forte do café que a avó torrava pela manhã, para moê-lo e preparar o café para o avô, que saía para a roça. Não, não era pela manhã. Era na madrugadinha, como hoje.

O cheiro é que reaviva minha memória. A avó, alta como eu, austera como eram todas as avós italianas, imigrantes como a minha, que conheci na infância. Ela, ao mesmo tempo em que torrava o café, alimentava as galinhas, colocava o feijão de molho, arrumava o pão e a manteiga na mesa. O feijão que mais tarde estaria fumegante num pequeno caldeirão, tampado por um prato, onde ela colocava o arroz e a costela defumada de porco. Sobrepunha a este um outro prato, amarrava tudo num pano de prato imaculadamente branco, e, por volta das 10 horas me entregava o embrulho, para que eu levasse ao avô, no campo.

Benditas férias eram aquelas! Todos os janeiros de muitos anos eu acreditava que o melhor do mundo era o cheiro do café torrado, o cheiro do toucinho fumegando no tacho, o cheiro dos mamões verdes ralados transformando-se em doce, o cheiro da terra molhada que a chuva lavara durante a noite.

Volto a pensar na avó. Sua tristeza era tamanha que parecia quebrar-se apenas por alguns segundos, e depois voltava a toma-la inteira. Minha mãe explicava essa tristeza contando do filho que ela perdera num acidente de caminhão. Dizia minha mãe que depois da morte dele, a avó nunca mais foi a mesma.

Eu lembro de poucos abraços da avó, sempre quando eu chegava para as férias. Sua saudação era um abraço. Nem muito apertado, nem muito longo. Mas um abraço afetuoso. Depois disso, seu carinho se revelava nos ovos cuidadosamente fritos com a gema mole, pois era assim que eu gostava deles. Ou numa pequena estripulia, quando abríamos um dos potes de doce – às vezes de mamão, outras de abóbora, ou dos figos em calda – e o comíamos, as duas, no final da tarde, quando o avô estava chegando da roça para o jantar.

O avô, que afirmava produzir no seu sítio tudo o que eles precisavam. Dizia com a voz grave e cheia de orgulho: da rua, só preciso do fósforo e do sal. E sentávamos na soleira da porta ainda com um resto de sol, e ele contava algumas histórias da sua infância, ou suas impressões sobre a vida e o mundo, enquanto picava o fumo e preparava a palha do milho para fazer seu cigarro.

Céus! A que me levou um insosso café solúvel!
publicado por Adelina Braglia às 08:41

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