Não dá pra precisar a data, embora o papel amarelado, o texto datilografado e o assunto, me remetam ao início dos anos 80. Sem saber os motivos da minha insônia, Rosa localizou esse papel hoje cedo e em meio a outra coincidência - temos, ao fundo, o som e a imagem dos depoimentos do Chico, numa série lançada pela TV Bandeirantes, onde ele faz o seu precioso, poético e preciso relato dos últimos 30 anos deste Brasil - lá vou eu no túnel do meu tempo!
Releio o texto no papel amarelado. Marabá, sul do Pará, a ponte sobre o rio Tocantins recém inaugurada, levava e ainda leva - o minério da serra de Carajás para o porto de Itaqui, em São Luiz, Maranhão. Marabá, o estado do Pará, seu povo, suas esperanças, suas prioridades, continuam a ser meros acidentes no trajeto da ferrovia.
Vale o registro, nem que seja só pra me lembrar o quanto sou reincidente na sensação de janelas fechadas e pedaços arrancados, formando buracos na alma:
Às 7 horas da noite, tendo ao fundo o sol poente
o trem atravessa o rio por sobre as pernas da ponte.
Não seria quase nada esse fato corriqueiro
se isso não me lembrasse outras noites, outros tempos.
Tempo em que se pensava que o mundo já acabava na curva do Itacaiúnas,
e tudo de ruim que isso podia trazer.
A gente era mais suave, mais viscoso, ou quem sabe, mais ingênuo.
Se eu fechar os olhos, apurar o olfato, os ouvidos e a memória,
vejo tudo como um filme:
o barraco do aeroporto, as canoas do Amapá que ainda estão por lá
como se não fizesse diferença Marabá ter chegado ao mar!
Talvez igual mesmo, só o sol poente.
E para ser honesta é preciso enxergar sem os olhos da saudade,
mas, por mais que eu me esforce fica sempre o gosto amargo do pedaço arrancado.
O trem atravessa o rio sobre enormes pernas de ferro,
as mesmas enormes pernas que levam Marabá ao mar,
ao lambe-lambe salgado das águas do oceano.