Este paradoxo se torna mais intrigante quando lembramos que, embora internamente, as elites brancas tenham forjado uma identidade nacional morena que transcenderia as raças nacionais; por outro lado a imagem do Brasil no exterior está marcada pela contribuição cultural de africanos e seus descendentes, figurados em corpos perfeitos, restituidores de um esplendor físico e de um vigor sexual que o mundo civilizado branco recusa, mas corteja e denota como natureza de uma alteridade negra racializada e exotizada dentro e fora do país. De fato, o que parece contraditório, isto é, a invisibilidade social do negro na cultura, nas artes, nas instâncias de poder político e econômico, não o é se recuperamos o processo da integração do negro na sociedade brasileira.
O Brasil foi o último país na América a abolir o regime escravocrata. Abolida a escravidão há mais de cem anos, permanece um plano de referência, uma idéia do negro que, ao orientar representações, transforma-o em um estereótipo, um fetiche, um organismo físico cuja construção histórica e social longe do que efetivamente este organismo é ou pode ser, o reitera como uma projeção desumanizada do branco. Tais representações se manifestam não somente em construções simbólicas e/ou discursivas, em papéis e categorias sexuais, mas também na conformação do corpo negro, na interpretação de seus hábitos de postura e de seus movimentos. Além disso, tais representações evidenciam, ao contrário do que pensam autores como Livio Sansone (1999), contextos no Brasil onde raça e etnicidade são polarizadas. Evidenciam também contextos onde um ódio racial, muitas vezes sublimado na vida pública e particular nacionais, é o outro lado de um desamor agora explicitado e normatizado.
Os criadores e veiculadores destas representações, de fato, atualizam uma agenda político-cultural universalista que recusa qualquer idéia de raça, que desconfia de qualquer interpretação racialmente orientada do contexto nacional, mas problematiza insuficientemente o background etno-racial ou insiderism sócio-biológico de seus agentes. Enfim, a dificuldade destes agentes e pensadores sociais no Brasil em reconhecer o que normatizam está determinada pelo fato de que, entre iguais ou entre aqueles que se fazem iguais pela correspondência de um quadro de pensamento e de uma agenda político-cultural, a ausência de um contingente negro correspondente ao existente na população brasileira e do negro não apenas como objeto, mas como sujeito da representação da condição negro-africana no Brasil é um contraponto desconhecido.
Torna-se compreensível, então, que no país em que os negros são quase metade da população, destine-se para os mesmos a produção de folclore ou de uma cultura popular onde devem cantar e dançar samba, jogar futebol ou caricaturar o feminino negro. Em contrapartida, manifestações culturais, festas, tradições religiosas, musicais e dramatúrgicas desqualificadas, muitas vezes perseguidas pela polícia, não só têm esboçado uma redefinição da condição negra, mas têm até mesmo proposto um outro pacto de nacionalidade desde um não-lugar social onde africanos exilados, ex-escravos, e negros libertos com a abolição, a rigor, nunca receberam o status de estrangeiros assim como não foram plenamente incorporados como brasileiros. Um não-lugar que nos revela que o Brasil para os negros, rigorosamente, nunca existiu. A nação que se lhes tornou possível tem sido um espaço supraterritorial, virtual e mítico.
O lar, a vida social tem sido a rua ou pequenos interstícios socioculturais e místicos forjados pela memória dos africanos e descendentes. Na rua, nestes pequenos interstícios, os negros quase sempre estão a cantar, tocar e dançar, manifestando muito mais do que um saber inconsciente, sobrevivências do passado ou folclore. Ao cantar, tocar e dançar forjam supraterritórios negros, como faziam os ancestrais africanos escravizados, falam de si mesmos, do meio social em que estão inseridos, reinventam suas histórias, mitos, ampliam autoconsciência. Põem em jogo a afirmação de conteúdos identitários diacríticos, a disputa pelo controle de signos atraentes para os propagadores da ideologia da nação morena e para o mercado da cultura e da arte.
Neste sentido, me parecem exemplares a coreografia Parabelo, do Grupo Corpo, que assisti em vídeo, e as coreografias do corpo negro que vi muitas vezes em espaços onde se toca, canta e dança o pagode baiano. Em Parabelo, reconheço uma musicalidade familiar, movimentos de corpo também familiares. Por outro lado, compreendo que falta a esta coreografia intencionalidade dramática. A concepção plástica de Parabelo é visualmente atraente, porém, idílica, não interroga o espectador, não perscruta o corpo e a cultura negros figurados. Vejo menos uma interdependência entre música e dança, tão característica nas manifestações culturais negras, e mais uma reapresentação no espaço cênico de movimentos negros familiares. Ou então comentários sobre danças negras, desconsiderando a tensão dos vazios criados pela irregularidade expressiva de um corpo popular, negro, exotizado e racializado.
No pagode baiano vejo uma paradoxal ideologia do erótico que, por um lado, elogia a busca pelo prazer sexual, a construção do desejo para além do que é visto como pecado e luxúria. Por outro lado, porém, atrelada a estruturas de poder da raça, do gênero e da sexualidade, não institui uma alternativa à ordem racial e sexual legitimada nem é um universo onde se transgride todas as proibições. Reencontramos no pagode baiano categorias sexuais que remetem ao estereótipo da negra boa de cama, sempre acessível ao homem branco, assim como do negão portador de misteriosa e violenta potência sexual, pai ausente e reprodutor de outros neguinhos e neguinhas repositores desta mesma ideologia opressiva.
Enfim, acredito que ainda está por vir a oportunidade em que a representação de práticas corporais tomem o negro e a cultura negro-africana no Brasil considerando o agenciamento de memória, as fantasias, as reconstruções de narrativas e mitos dispostos em várias tradições afro-descendentes no país. Deste modo, o negro aparecerá menos estranho, menos literal, mais complexo e tensionado, a cultura negro-africana se mostrará como ela é: viva, policiada, mas em trânsito."
(Práticas corporais e afro-descendência no Brasil: o não-lugar do negro no Brasil - Ari Lima, doutor em antropologia social pela UnB e professor da Faculdade de Tecnologia e Ciências em Salvador)
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