Há muitos dias não falo do meu país. Ele e eu vamos mal. Assim, não me parece adequado o roto falar do esfarrapado.
Quanto a mim, parece que melhoro, apesar dele. Quanto a ele, tem chances de melhorar sem mim. Melhoro vencendo uma melancolia sorrateira que quer me abater todos os dias. Meu país não sofre de melancolias, e não sei como vai superar esse quase desengano que se abate sobre ele.
Uma forma de espantar minha melancolia - que desenha manchas roxas no corpo, como ensinava minha madrinha - é tentar entender os sinais. Sinais indicados pelos pedaços de músicas que amanhecem subitamente na memória. Lá vai a de hoje:
...e depois que a tarde nos trouxesse a lua,
se o amor chegasse, eu não resistiria,
e a madrugada acalentaria a nossa paz...(*)
Meu país, também cantante, poderia fazer o mesmo. Lembrar-se de músicas que o incitem a ter esperanças. Uma delas?
...E no entanto é preciso cantar,
mais que nunca é preciso cantar,
é preciso cantar e alegrar a cidade.
A tristeza que a gente tem,
qualquer dia vai se acabar todos vão sorrir,
voltou a esperança é o povo que dança,
contente da vida, feliz a cantar.. (**)
Mas agora vamos ao Neruda, que faz bem ao país e a mim.
Está tudo florescido nestes campos,
macieiras, azuis titubeantes, capinzais amarelos,
e na grama verde vivem as amapolas.
O céu inextinguível, o ar novo de cada dia,
o tácito fulgor, benesse de uma extensa primavera.
Só não há primavera em meu recinto.
Enfermidades, beijos transtornados,
como heras de igreja se grudaram
nas negras janelas desta vida
e apenas o amor não basta,
nem o selvagem e extenso
aroma da primavera.
E para ti o que são neste agora
a luz desenfreada, o progresso
floral da evidência,
o canto verde das verdes folhas,
a presença do céu com sua taça de frescor?
Primavera de fora, não me atormente,
desatando em meus braços vinho e neve,
corola e galho partido de pesares,
dá-me hoje o sonho das folhas noturnas,
a noite em que se encontram
os mortos, os metais, as raízes,
e tantas primaveras já extintas
que despertam a cada primavera.
(Pablo Neruda Com Quevedo, na primavera, in Neruda por Skármeta)
(*) Eu e a brisa Johnny Alf
(**) Marcha da quarta-feira de cinzas Carlos Lyra e Vinícius de Moraes