A rosa de ontem era para lembrar a bomba. Mais de meio século. Hoje o dia nasceu claro como sempre neste lado dos trópicos. Muito sol, muita luz. O ontem já pareceu esquecido.
A indisposição de escrever organizadamente me leva a alinhavar inquietações que nada têm a ver com Hiroxima. Ou talvez tenham. Sei que daqui a horas eu também já não vou me lembrar do dia de ontem, dessa funesta "comemoração". Mas, vou me lembrar permanentemente, porque é meu trabalho diário, da reunião de ontem.
Uma reunião numa pequena comunidade negra rural, de remanescentes de quilombos. O mais velho, Luís, 76 anos, inicialmente desconfiado, logo depois conversa animadamente comigo, junto com a mulher e os filhos. Faço meu falatório incial: a escravatura, os mecanismos legais e sociais que o governo e a sociedade brasileira - tanto ao longo dos 352 anos do regime escravocrata "oficial" quanto no período posterior à "libertação" - usam para escamotear o racismo, a desigualdade, a discriminação.
Conto fatos, falo novamente das leis e das regras que não estão nas leis, mas que prevalecem numa sociedade preconceituosa, revivo o que sei do preconceito na sala de aula - e aí os olhos dos jovens se iluminam, pois sei que falo do que viveram lá dentro - e blá, blá, blá.A nova constituição de 1988, o direito inserido nela, etc. e tal.
Faço sempre isso com enorme prazer, pois vejo que o pouco que eu sei ainda é muito mais do que o que eles sabem. Eles sentem o que falo e quando o sentir começa a se explicar por atos e fatos, aqueles que eles rapidamente percebem como "históricos", faz-se aí uma química chamada consciência. E é essa a minha melhor tarefa.
Explico o direito à titulação das terras por eles ocupadas ancestralmente, digo que esse "direito" não é beneplácito do Estado brasileiro, mas sim fruto de uma intensa luta do movimento negro. Algumas perguntas são feitas. Respondo as que sei e me comprometo de levar até eles, na próxima reunião, a pessoa que poderá esclarecer o que não sei.
Aí, bem mais à vontade começam a me contar o que eu não sei. Já havia me chamado a atenção na estrada que a área está cercada por fazendas. E é exatamente isso que eles começam a contar. Entre as duas comunidades, onde os avós e bisavós andavam livres, pescavam, caçavam, instalou-se uma fazenda, nome dado a um imenso latifúndio sem nem sequer um boi pra disfarçar. A fazenda cortou as terras, os laços, as famílias, a convivência e a liberdade ao meio. E nesse relato, o medo e a desconfiança voltaram a aparecer nos seus olhos.
Perguntando mais um pouco, descubro o óbvio: temem a derrota frente o poder econômico e político dos fazendeiros da área. E eu digo-lhes que se quiserem enfrentar a batalha, terão que discutir muito entre si, avaliar quem vai e quem não vai com eles, garanto que o programa de governo que coordeno dará o apoio legal e institucional para a defesa desse direito. Vão pensar. Vão me avisar assim que tiverem uma decisão.
Na volta, noite já, passo de novo pelas mesmas cercas. Penso na rememoração do crime da bomba de Hiroxima. E penso que gostaria muito de saber com clareza - o que me aliviaria a angústia - qual a diferença entre crimes que ceifam as vidas brutalmente e de uma só vez e os que ceifam vidas lentamente, século após século.
PS: não, não sou negra. Até já pensei que se deus existisse, um milagre poderia me fazer amanhecer negra. Pois, como diz uma amiga, solidariedade é uma coisa e a dor da cor é outra.