Deixa que eu escape às vezes, porque ainda assim eu não estarei distante de você.
Estarei apenas fora do alcance das suas mãos.
Deixa que eu me afaste de você, indo cabeça a dentro, para espanar as memórias e as aflições. Essa é uma tarefa que preciso fazer sozinha. E eu sempre volto.
Não se zangue se em alguns momentos eu pareço não ouvir ou se meus olhos não se fixam nos seus. Ainda assim eu a ouço e vejo. Apenas não consigo retornar com a pressa que você precisa.
Não se perca de mim, perdendo-se assim nas coisas pequenas do cotidiano. Não é verdade que são elas as mais importantes. Elas são apenas as coisas pequenas do cotidiano.
Dê descontos à minha preguiça, ao meu ainda não recuperado ânimo. Considere, sempre, que eu tenho, quem sabe por herança genética, um lado cinzento. E nele eu habito sozinha.
E que é improvável que eu seja quem não sou. E que se é a isso que se chama egoísmo, essa é a minha doença adicional. Aliada à melancolia diagnosticada.
E quando eu me perder de você, às vezes - porque é da minha natureza - leia o poeta e relaxe, enquanto isso corresponder ao que você necessita:
Em meus momentos escuros
Em que em mim não há ninguém,
E tudo é névoas e muros
Quanto a vida dá ou tem,
Se, um instante, erguendo a fronte
De onde em mim sou aterrado,
Vejo o longínquo horizonte
Cheio de sol posto ou nado
Revivo, existo, conheço,
E, ainda que seja ilusão
O exterior em que me esqueço,
Nada mais quero nem peço.
Entrego-lhe o coração.
(Fernando Pessoa)