" Se a esperança se apaga e a Babel começa, que tocha iluminará os caminhos na Terra?" (Garcia Lorca)

07
Dez 07

 

O sono fugiu de mim cedo hoje.
 
Depois de tomar um capuccino de pacotinho – delicioso, aliás! – sentei aqui para escrever dois e-mails antes de começar a trabalhar. O primeiro para uma amiga querida que perdeu há duas semanas seu único irmão e que a minha covardia impediu que eu dissesse a ela antes o quanto fiquei triste e o quanto a amo. Fiz isso e sinto-me um pouco melhor, com 100 gramas de covardia e egoísmo a menos.
 
O segundo foi para dizer à filha da minha professora, que continua muito doente, que a beije por mim.
 
As duas estão geograficamente longe de mim. A amiga e a professora. E, automaticamente, em momentos em que a distância deveria não existir, porque dificulta o abraço, fico catando as justificativas que por quase trinta anos me mantém longe dos meus.
 
Não há nada que explique isso satisfatoriamente. Nenhum fato nobre, nenhuma missão gloriosa. Há decisões, vontades, desejos. E como tudo isso reflete apenas egoísmo ou privilégio de poder escolher, convenhamos que não há nobreza nisso.
 
Mas, na pior circunstância profissional e financeira da minha vida, que atravessei, ao longo deste estranho ano de 2007, ainda assim não quis voltar, em que pese que lá estejam meu irmão querido, minhas irmãs postiças, minha amiga de vida e meus melhores amigos. Melhores não porque são Semp-Toshiba os de lá e CCE os de cá. Não é isso. Melhores porque viveram comigo os mais importantes momentos da adolescência e da juventude, que é quando a gente se forja, para o bem ou para o mal, e quando somos muito inconstantes e chatos e também maravilhosos. E eles tiveram paciência e carinho para esperar que eu virasse gente.
 
Os daqui já me acharam pronta e, gostem ou não do que sou, eu sou o que os de lá me ajudaram a ser.
 
Não sei se retorno um dia. Talvez por não ter jamais definido isso claramente, fui ficando “provisoriamente” aqui por três décadas, sem que conseguisse não me sentir estrangeira. E é engraçado que em São Paulo, mesmo tanto tempo distante de mim, eu me sinto nativa.
 
Lembrei da madrinha, que completaria anos no dia 10 agora e da sua resistência em vir me visitar, logo depois que vim para cá, numa época em que eu podia custear sua vinda (bons tempos!). Para ela, o Pará era uma nebulosa e por mais que eu me esforçasse, a cada ida lá, em convencê-la que não vivíamos de tanga entre índios ferozes, eu não conseguia. E olha que ela era uma senhora da melhor qualidade, descontando apenas seu fanatismo pelo Jânio Quadros!
 
Talvez ela tivesse razão. Não sobre os índios ferozes, mas sobre sermos uma nebulosa forma de vida que sobrevive ao que nos é imposto, enfiado goela abaixo como se não fossemos capazes de escolher e traçar nosso destino, espezinhados por um Brasil fictício que acha que é o único Brasil real.
E, nessas divagações matinais, percorri também textos antigos desta Travessia – o que comprova a minha imodéstia - e fui achar um, de junho de 2006, que continuo assinando tal como está.
 
 
Eu não gosto da solidão,
o que difere de gostar, às vezes,
de ser sozinha.
Eu não gosto de chuva fina:
ela me molha a alma
e eu levo muito tempo a enxuga-la.
Eu gosto de temporais,
mesmo quando me fazem sentir medo,
lembrando as lições cretinas
do colégio da infância,
onde me ensinavam que o mundo acabaria
em dias de raios e trovões.
Eu gosto das pessoas comedidas
e invejo as deslavadas.
Mais que isto, amo as transgressoras.
Eu não gosto de afagos sem calor
daqueles beijinhos formais
dados por quem
não tenho a menor vontade de beijar.
Eu gosto de frutas, todas,
e amo algumas verduras,
aquelas de folhas escuras
e nomes lindos:
rúculas, escarolas, espinafres!
Eu não gosto muito de doces,
mas amo sorvetes.
Adoro peixes e massas,
mesmo sabendo que deveria odiar as últimas.
Eu não gosto de olhos que fogem dos meus,
nem de mãos que apertam frouxas,
e fazem de um cumprimento
uma gosmenta e desconfortável apresentação.
Eu gosto de Pierre-Joseph Proudhon
e sei que isto me faz parecer muito antiga,
mas compõe o meu perfil
e aponta as minhas idiossincrasias.
Eu gosto de boleros, jazz e blues.
E amo os poetas,
quase todos os que conheço e
lamento conhecer tão poucos.
E amo os rios
embora reconheça
ter com o mar uma relação quase religiosa,
poderosa, nos termos antigos:
Temo-o!
 
(Rol de dores e prazeres, 21 de junho de 2006)
publicado por Adelina Braglia às 07:58

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